SP: MPT denuncia família que manteve mulher em condição análoga à escravidão durante 50 anos

Filhas achavam que ela estava morta

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Publicada 07 de Abril, 2022 às 13:42

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O Ministério Público do Trabalho (MPT) em Santos, no litoral de São Paulo, ajuizou uma ação civil pública contra uma família por submeter uma empregada doméstica a uma condição análoga à escravidão. Segundo o órgão, durante cerca de 50 anos, ela não recebeu qualquer salário ou auxílio financeiro, era impedida de sair sozinha - a não ser para executar tarefas - e sofria abusos físicos e verbais por parte da patroa e suas filhas.

A ação pede o bloqueio de bens dos réus em R$ 1 milhão, para o pagamento de danos morais coletivos, bem como o reconhecimento de que submeteram a vítima a condições degradantes. O caso chegou ao MPT por meio da 2ª Vara do Trabalho da cidade, e veio à tona por meio de denúncia à Delegacia de Proteção às Pessoas Idosas.

Segundo o órgão, a idosa, de 89 anos, foi admitida nos anos 70 como empregada doméstica, para trabalhar na casa de uma mulher em Santos. A vítima, que é negra, contou à Justiça que perdeu sua carteira de identidade (RG) ainda naquela época, e que foi "contratada" após a promessa de que os patrões a ajudariam a providenciar uma nova.

Entretanto, conforme relatou, isso nunca aconteceu. Ela ainda foi impedida de guardar valores - inclusive dinheiro em espécie -, e nunca conseguiu sair para solicitar novas vias de seus documentos. De acordo com o que contou, quando implorava para que a deixassem procurar seus familiares, respondiam que, se ela fosse, perderia para sempre o abrigo e alimentação que recebia ali.
Com os anos, a situação de saúde da empregada doméstica piorou, e a violência física e psicológica se intensificou. As filhas da patroa proferiam xingamentos e humilhações constantes aos gritos contra ela, que relatou ter sofrido, também, agressões físicas, como "tapas e socos".

Conforme o MPT, em uma dessas ocasiões, uma vizinha de apartamento resolveu denunciar o caso à Delegacia de Proteção às Pessoas Idosas, para onde enviou uma gravação das agressões verbais, em que se ouvia uma das filhas gritando "(...) essa sua empregada vaga*****; essa cretina, demônia (...)".

A vítima está agora aos cuidados de parentes, que foram localizados pela delegacia após investigação policial. Por meio de ação trabalhista movida contra a família da ex-patroa na 2ª Vara do Trabalho de Santos, ela obteve o direito ao pagamento de pensão mensal no valor de um salário mínimo, bem como o custeio integral de plano de saúde.

O caso chegou ao órgão por meio da Vara do Trabalho, e o MPT entrou com a ação civil pública depois que a família se recusou a fazer qualquer acordo para corrigir a situação.

Para o procurador do MPT Rodrigo Lestrade Pedroso, não há dúvidas de que a vítima foi submetida a trabalho análogo à escravidão, "agravado pela vulnerabilidade de pessoa idosa, extremamente simples, que mal consegue descrever tudo por que passou, e tampouco ter consciência da situação de exploração a que foi submetida por mais de 50 anos". 

Filhas procuravam vítima há 50 anos
 
De acordo com o MPT, as duas filhas da empregada doméstica a procuraram nesses 50 anos, sem saber se a mãe estava viva ou morta. No entanto, era impossível encontrá-la, já que ela era mantida fora dos registros pelos antigos patrões. Por isso, chegaram a imaginar que a mãe havia morrido.
 
A primeira filha morreu sem realizar o sonho de reencontrar a mãe, segundo texto inicial da ação trabalhista. A outra desenvolveu graves problemas psicológicos por conta do abalo com o desaparecimento da mãe, e hoje precisa de cuidados especiais.

A ex-patroa da vítima e uma de suas três filhas faleceram em 2021. Outra filha já havia morrido antes de o caso vir à tona. O MPT considera que todas se beneficiaram diretamente da situação degradante da empregada doméstica, já que também administravam a casa e lhe davam ordens diretas, aproveitando-se do fato de que havia alguém para cuidar da mãe em tempo integral, sem custo algum.
Por esse motivo, na ação, o MPT pede o bloqueio dos bens de todas as filhas, inclusive do inventário das falecidas. Também pede o bloqueio de bens do marido de uma das filhas, que administrava a pensão e os bens da sogra. 

"A dita escravidão contemporânea tem cor, raça, e no caso do trabalho doméstico, gênero. São as mulheres negras, em sua maioria nordestinas, vítimas de uma vulnerabilidade social extrema, que aceitam o trabalho doméstico, muitas vezes em troca apenas de comida e moradia", alerta o procurador.
 
Segundo Rodrigo, o fato de os réus não residirem no local da prestação de serviços não afasta o vínculo empregatício, já que os serviços prestados como doméstica e acompanhante eram destinados ao núcleo familiar, e não apenas à ex-patroa com quem a vítima residia.
 
Na ação, o MPT requer liminar para arresto do imóvel em que a vítima era mantida, e também o bloqueio de bens móveis e imóveis, veículos e ativos dos réus no valor de R$ 1 milhão. Também pede a confirmação de que submeteram a trabalhadora à situação de trabalho análogo ao escravo, e que sejam, por isso, condenados ao pagamento de danos morais coletivos não inferior a R$ 1 milhão.

O procurador afirmou ao g1 que este valor será revertido a programas específicos de combate ao trabalho escravo. De acordo com ele, casos assim ainda são comuns no país, e é necessário conscientização da sociedade. "As pessoas precisam saber que todos devem ter os direitos respeitados, seja uma empregada doméstica até o CEO de uma grande empresa. É a dignidade da pessoa humana", conclui.

Denúncias de casos como esse podem ser feitas pelo site do MPT, até mesmo de forma anônima, ou pelo Disque 100 - Disque Direitos Humanos, conforme orienta o procurador.

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