Corrupção, Justiça e arbítrio

1.126

Publicada 02 de Outubro, 2014 às 17:48

Compartilhar:
>> publicidade : ver novamente <<

A corrupção é um mal a ser combatido com todas as armas possíveis. Sua disseminação afeta a credibilidade das instituições, fazendo com que a ideia da propina paire no ar, seja quando se trate de grandes contratações, seja nos mais comezinhos atos, como a renovação de uma carteira de motorista.

Por isso, o advento de novas leis (como a Lei Anticorrupção, Lei 12.846/13), a criação de órgãos de controle, como a CGU, e outros instrumentos são mais do que bem vindos e merecem aplausos, ainda que criticas pontuais possam ser feitas a alguns de seus aspectos.

No entanto, como toda politica criminal, o combate à corrupção tem ? para usar as palavras de VON LISZT ? um limite infranqueável, uma fronteira que deve ser respeitada: a legalidade. Por esse princípio para lá de básico, qualquer ato de repressão aos crimes contra a Administração Pública, por mais graves que sejam, deve estar autorizado por lei, por uma decisão prévia do legislador que, mediante uma ponderação politica, entenda como adequado o uso de certos instrumentos para inibir delitos.

Nessa linha, é preocupante uma proposta que surge nos mais respeitáveis meios acadêmicos e entre operadores do direito. A ideia de que, nos crimes que lesionam o patrimônio público, uma vez decidida a condenação em primeiro grau, poderá o juiz determinar a prisão preventiva sempre que os bens supostamente desviados não forem recuperados.

A proposta segue o seguinte raciocínio: se o réu foi condenado pela apropriação de dinheiro público e estes valores não foram encontrados, presume-se que estão ocultos. Se estão ocultos, presume-se que podem ser acessados pelo condenado, a qualquer tempo e secretamente, para viabilizar um possível plano de fuga. Por isso, seria legitima a prisão cautelar, para assegurar a aplicação da lei penal (CPP art.312).

Com todo o respeito aos que defendem a tese, mas não parece uma proposta adequada à Constituição e à lei processual penal.

No que se refere à Constituição, goste-se ou não, o documento maior do ordenamento jurídico consagra a presunção de inocência[1]. O inciso LVII do art.5° fica que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Dê-se a isso o nome de presunção de inocência ou de não culpabilidade[2], o fato é que nenhum juízo de valor na seara penal, fixado sobre a ideia de culpa, pode gerar efeitos antes de uma condenação definitiva. A restrição de qualquer direito durante o processo exige indícios concretos de que o réu atrapalha a instrução penal, arrisca a ordem pública ou prepara-se para subtrair-se à aplicação da lei.

Diante disso, a premissa ? decorrente de uma sentença em primeiro grau - de que o agente cometeu o crime contra a Administração Pública e desviou valores não pode fundamentar qualquer medida porque carece de confirmação pela instância superior. A apelação tem efeitos suspensivos, e nada pode advir do juízo de valor provisório realizado neste momento.

Imaginemos o caso ? bastante frequente ? no qual o réu respondeu a um processo em liberdade porque o magistrado não identificou a necessidade da prisão preventiva. Será legitimo alterar sua situação processual diante da sentença condenatória e da constatação de que os bens não foram encontrados? Será legítimo determinar sua prisão sem qualquer comportamento específico deste réu para turbar o processo? Se ele participou de todos os atos e cumpriu com todas as determinações do juiz, é adequado prendê-lo apenas pelo advento de uma condenação?

Mais. Imaginemos que, nesse caso, o réu é inocente ? o que é possível, dada a falibilidade humana, também reconhecida nos juízes. Deverá este cidadão permanecer preso até análise do caso pelo Tribunal porque não foram encontrados valores que não desviou e sequer sabe onde estão?

Há quem sustente ser possível tal situação, uma vez que a presunção de inocência vale até a decisão de primeiro grau, após o que haveria a presunção de não culpabilidade, que enfraqueceria a posição do réu.

Não parece plausível tal raciocínio. Em primeiro lugar porque a distinção entre presunção de inocência e de não culpabilidade é tênue demais para justificar uma prisão automática no segundo caso, que seria impensável no primeiro. Em segundo lugar, ao fixar o efeito suspensivo da apelação e revogar as hipóteses de prisão cautelar automática, o legislador deixou claro que a restrição provisória à liberdade exige a referencia a atos concretos do réu que a justifiquem. O legislador fixou uma diretriz, deixou claro seu rechaço à supressão da liberdade pelo mero advento de sentença condenatória.

É preciso um elemento concreto para a cautelar de prisão, como a constatação de que o réu fez contatos com agentes no estrangeiro para fins de fuga, operações de continuidade delitiva, atos de destruição de provas, ou algo do gênero. Mas prender alguém sem a verificação de qualquer ato positivo que revele sua necessidade, apenas pela existência de um juízo em primeiro grau sobre os fatos, é execução provisória da pena, ainda que revestida de um pretenso objetivo de assegurar a aplicação da lei penal.

Por outro prisma, pode-se argumentar que a prisão em questão seria a forma mais eficaz de garantir o retorno dos valores desviados, uma vez que o condenado buscaria apresentar os bens desaparecidos para evitar sua restrição de liberdade. Nesse caso, ter-se-ia um desvio brutal do instituto processual penal. A prisão cautelar é cautelar pessoal, que almeja garantir a instrução e a aplicação da lei em relação ao réu. A recuperação de ativos é assegurada pelas cautelares reais. Confundir os institutos seria legitimar o uso da restrição da liberdade para forçar a efetividade do perdimento ou do ressarcimento. Seria uma nova espécie de prisão por divida, uma quase extorsão, incompatível com um ordenamento avesso à monetarização da liberdade.

Por fim, há aqueles que consideram a prisão necessária nesta fase processual para assegurar a imagem da Justiça e demonstrar que a impunidade não é a regra em nosso país.

Para contrastar tal assertiva, transcrevemos passagem do voto do Ministro Eros Grau, em trecho relevante e digno de nota de seu voto no HC 84.078-7/MG (julgado em 05.02.2009):

"A prevalecer o entendimento que só se pode executar a pena após o trânsito em julgado das decisões do RE e do Resp, consagrar-se-á, em definitivo, a impunidade. Isso ? eis o fecho de outro argumento ? porque os advogados usam e abusam de recursos e de reiterados habeas corpus, ora pedindo a liberdade, ora a nulidade da ação penal. Ora ? digo eu agora ? a prevalecerem essas razões contra o texto da Constituição melhor será abandorarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete! Não recuso signicação ao argumento, mas ele não será relevante, no plano normativo, anteriormente a uma possível reforma processual, evidentemente adequada ao que dispuser a Constituição. Antes disso, se prevalecer, melhor recuperarmos nossos porretes..."

Pelo exposto, sob qualquer perspectiva, a proposta de prisão processual automática em decorrência de condenação por crimes contra a Administração Pública, quando não encontrados os bens supostamente desviados, não merece prosperar.

Como já afirmado[3], a presunção de inocência, embora consagrada constitucionalmente, somente mantém seu espectro de abrangência pela incessante atividade jurisdicional na preservação da garantia constitucional. Vez ou outra surgem leis ou propostas que mitigam a regra, buscam ? direta ou transversamente ? afastar sua incidência, sempre pelo argumento de que o respeito à disposição constitucional aumenta a impunidade e enfraquece a política criminal, em especial nos casos de réus acusados de delitos graves.

No entanto, a redução da impunidade não está atrelada ao enfraquecimento das garantias constitucionais. Ela passa pela racionalização do processo penal, pelo desenvolvimento de sistemas de inteligência policial, pelo cuidado das autoridades em evitar nulidades que atrasam a persecução. Em suma, existem várias formas de conferir eficiência ao sistema penal sem que se abra mão dos preceitos construídos pelo tempo, que protegem o cidadão contra o arbítrio, contra o mau uso do ius puniendi.

A gravidade dos delitos imputados ao réu é mais um elemento pelo qual se deve proteger a presunção de inocência. Aqui cabe recordar RUI BARBOSA, para quem: "Quanto mais abominável é o crime, tanto mais imperiosa, para os guardas da ordem social, a obrigação de não aventurar inferências, de não revelar prevenções, de não se extraviar em conjecturas (...) Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os acusados. Como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito"[4]

Pelo exposto, resta claro que apesar dos anseios por uma intervenção estatal mais aguda na liberdade em nome de uma pretensa segurança, ainda vigora um limite, um parâmetro constitucional e intransponível ao menos no Estado de Direito: a inocência como o estado original de todo o cidadão brasileiro.

Afastada tal garantia, seja pela fase processual, pela gravidade do delito, ou por qualquer outra justificativa atrelada a um juízo de culpa, restará desprotegido o cidadão perante o Estado e perante seus pares, submetido a restrições de direitos antes de considerações definitivas sobre os fatos ou sobre o direito por ele alegado. Esvaziado estará o Estado de Direito, e, nesse caso, faremos coro ao e. Ministro Eros Grau: "melhor recuperarmos nossos porretes..."[5]

* Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de direito penal da USP

[1] Sobre o tema, vale a leitura de MORAES, Mauricio Zanoide, Presunção de inocência no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen, 2010. Tambem um repasse histórico do tema no voto do Ministro Celso de Mello na ADPF 144/DF (j.06.08.08), que afirma já haver alusões à presunção de inocência no direito romano (´innocens praesumitur cujus nocentia non probatur´) e em Tomás de Aquino. Ver ainda nosso BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Deixem em paz a presunção de inocência. Revista AASP, Ano XXXII, outubro 2012, n.117, p.184

[2] Sobre a ideia de não culpabilidade, ver MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho penal. Tomo I. Trad. Santiago Sentis Melendo e MariaNO Ayerra Redín. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-America, 1951. Também sobre o tema, ver GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991,

[3] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Deixem em paz a presunção de inocência. Revista AASP, Ano XXXII, outubro 2012, n.117, p.184

[4] BARBOSA, Rui, Novos discursos e conferências. São Paulo: Saraiva, 1933, p.75, e O dever do advogado, Rio de Janeiro: Fundação Casa do Advogado/AIDE, 1985, p.19. Trechos também citados no voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF 144/DF

[5] HC 84.078-7/MG (julgado em 05.02.2009)

** Quer participar dos nossos grupos de WhatsApp/Telegram ou falar conosco? CLIQUE AQUI.

VEJA MAIS NOTÍCIAS | Paraná / Brasil / Mundo